Julia Margaret Cameron, uma fotógrafa inglesa do século dezanove que fantasiava com reis mitológicos e literários, teve a oportunidade de retratar um principezinho verdadeiro. E desta oportunidade nasceu uma imagem desarmante.
Henry Herschel Hay Cameron, Julia Margaret Cameron, cerca de 1873
Colecções da National Portrait Gallery
Julia Margaret Cameron era simultaneamente uma estranha e um membro da elite cultural britânica do terceiro quartel do século dezanove. Se por um lado, pertencia às classes privilegiadas inglesas, com ligações chegadas a figuras importantes da cultura e da ciência, por outro lado, o seu estatuto de mulher fotógrafa era raro e a sua perspectiva estética inovadora. Desdenhada pelos profissionais, secundarizava o apuro técnico e a nitidez das fotografias em favor da vertente simbólica das imagens. Próxima dos pré-Rafaelitas, recorria a conhecidos e a familiares e, com eles, fazia encenações. Usava propositadamente exposições longas, manipulava as lentes para desfocar grandes áreas e procurava obter uma estranheza que transmitisse inverosimilhança e distanciamento temporal.
Julia Margaret Cameron fotografou brilhantemente realeza e poderes imaginários de diferentes proveniências, do mito arturiano ao panteão greco-romano de deuses e reis. Mas, numa ocasião,em Julho de 1868, fotografou um príncipe verdadeiro.
Julia Margaret Cameron, principe Alamayou, Julho de 1868
imagem da Wikimedia Commons
Alamayou é uma criança de sete anos que Cameron fotografa por várias vezes. Umas, com o seu primeiro tutor inglês, o capitão Tristram Speedy. Outra, novamente com Speedy e um abissínio anónimo. Por fim, Alamayou figura só, em pose de descanso com suposto cenário etíope e traje a condizer. Furta-se Julia Cameron às roupas de pequeno lorde inglês que o menino usará no seu dia a dia, e com que será registado noutros retratos. Quer o princípe de um império estranho, distante, orgulhoso, misterioso. E quere-o ali, na ilha de Wight, onde mora e onde improvisa o seu estúdio.
Desta intersecção entre Realidade e Fantasia nasce uma imagem única na obra de Cameron. Uma imagem de uma tristeza desoladora.
Creio que o ar obviamente angustiado do pequeno príncipe não é encenado.
A sua presença em território inglês não é planeada ou desejada. Capturado meses antes em Magdala, capital provisória da Etiópia ( como quase todas as outras capitais que o reino teve), na sequência de uma expedição punitiva do império britânico, é levado para a Inglaterra após o tremendo massacre em que, quase sem baixas, as forças imperiais dizimam milhares de resistentes etíopes e levam ao suicído do pai de Alamayou, o imperador Tewodros II.
Em rigor, a criança é um troféu e acompanha o produto do saque da corte etíope, nomeadamente a coroa de Tewodros II, que é feito chegar à sede do império.
A rainha Vitória interessar-se-á pelo jovem herdeiro e providenciará para que seja educado como um gentleman britânico, encaminhando a criança, que desconhecera a faca e o garfo até aos sete anos, para o mundo dos protocolos e convenções de Oxford. Esperava-se criar um novo imperador à imagem da Europa. Mas o príncipe será sempre um estranho, um prisioneiro, mesmo que sem grilhetas e vestido com o melhor tweed. Pede inúmeras vezes o retorno, ecoando o pedido que a avó tenta fazer chegar em cartas enviadas da terra natal, e que se pensa terem-lhe sido sonegadas.
Não acontecerá nunca o retorno. Aos dezoito anos, falhados os estudos na Rugby School de Oxford, e insatisfeito com a academia militar de Sandhurst onde fora entretanto inscrito, Alamayou desvanece-se em seis semanas, após contrair pleuresia durante a estadia em casa de um seu antigo tutor, Cyril Ransome.
Sepultado na capela real de St. George, no castelo de Windsor, Alamayou é ainda hoje alvo de diferendo entre a Etiópia e o Reino Unido, exigindo a primeira o repatriamento dos restos mortais do princípe.
Há, nesta história de príncipes, muito pouco de Saint-Exupéry e bastante de Maquiavel.
Fonte: Obvious