Fonte: Visão online

Em entrevista exclusiva à VISÃO, a irmã de Sandra Pedro, a grávida que esteve quatro meses em morte cerebral, conta como a família viveu todo este processo e porque irá lutar em tribunal pela guarda de Lourenço, que o mundo conheceu esta semana como “bebé-milagre”

A 19 de fevereiro, Sandra Pedro ligou para a irmã mais velha, Anabela, para lhe dar conta das novidades. Grávida de 17 semanas, tinha ido fazer uma amniocentese e confirmara que o bebé que carregava no ventre era um menino. Estava muito feliz, tão feliz como quando lhe contara que ia ser mãe novamente, cerca de um mês e meio antes. Foi nessa altura que contou também à irmã que tinha um novo namorado, Miguel Ângelo. “Ela desejava muito ter um segundo filho, mesmo sabendo que não devia, por causa dos seus problemas de saúde”, recorda hoje Anabela Pedro, 39 anos, na sua casa térrea, numa vila do Ribatejo. “Nesse dia voltei a insistir para ela ir ao médico, para que se tratasse, e ela voltou a dizer-me que estava tudo controlado…”

Mas não estava. Depois de 10 anos antes ter sido tratada a um tumor nos rins, soubera no ano passado que o problema tinha regressado e que teria de ser novamente operada e submetida a tratamentos. “Ela dizia que não queria voltar a passar por tudo aquilo e deixou de ir às consultas no Curry Cabral”, conta a irmã, desgostosa. “Chegou a dizer ao meu pai que se fosse operada morria… e que se não fosse também acabaria por morrer. Mal por mal, preferia não voltar a sofrer.”

Terá sido o tumor que continuava a crescer na suprarrenal a originar o pico de tensão arterial que levou Sandra a queixar-se de dores de cabeça insuportáveis na manhã do dia seguinte a esta conversa com a irmã mais velha. Ainda tiveram tempo para falar sobre a luz das suas vidas: os filhos de ambas. Sandra era mãe de um rapaz de 13 anos, de quem Anabela é madrinha, e Anabela é mãe de outros três meninos, com idades entre os 3 e os 20 anos, e Sandra era madrinha do mais velho. “O bebé vai chamar-se Lourenço”, contou-lhe, antes de desligar. Foi a última vez que ouviu a voz da irmã, com quem manteve sempre uma relação muito próxima.

No dia seguinte, a 20 de fevereiro, passava pouco da hora do almoço quando Anabela atendeu um telefonema da mãe, Maria da Piedade. Estava aflita, alguém lhe tinha ligado para Coimbra dizendo que Sandra fora internada no hospital de Vila Franca de Xira. “Liga para lá a saber como está a tua irmã, por favor”. Anabela ligou. Mas ao telefone não podiam dar informações clínicas e, depois de muita insistência, só conseguiu saber que ela tinha sido transferida para o hospital de São José em estado crítico. Novo telefonema e nova recusa em fornecer mais informações. “Disseram-me apenas que era importante que a família mais direta se apresentasse rapidamente no hospital”.

Nesse sábado Anabela estava sozinha com os filhos de 3 e 7 anos e, vivendo a 150 quilómetros de Lisboa e sem carta de condução, não podia chegar lá rapidamente. Desesperada, ligou para uma sobrinha, que vive na zona de Vila Franca, para ir por ela ao São José o quanto antes. Nessa tarde as informações foram escassas: “Disseram apenas que lhe tinha rebentado uma veia na cabeça e que ela estava muito mal, para nos prepararmos para o pior.”

A médica intensivista Susana Afonso declarou a morte de Sandra Pedro a 20 de fevereiro mas viria a acompanhá-la ainda durante quatro meses, nos cuidados intensivos de São José

A médica intensivista Susana Afonso declarou a morte de Sandra Pedro a 20 de fevereiro mas viria a acompanhá-la ainda durante quatro meses, nos cuidados intensivos de São José

António Pedro Ferreira

CONTRARIAR A MORTE

A família não sabia ainda mas Sandra sofrera já duas paragens cardíacas a caminho do hospital de Vila Franca de Xira, tendo sido reanimada pelos bombeiros que a transportavam. Perante o quadro de hemorragia intracerebral, foi ligada a suporte básico de vida e transferida para o hospital de São José, em último recurso, para ver se na unidade de neurocríticos daquele hospital seria ainda possível fazer alguma coisa por ela.

A médica intensivista Susana Afonso estava de banco quando Sandra Pedro entrou na unidade de cuidados intensivos de São José, já em coma. E depressa percebeu que a situação daquela jovem mulher era irreversível. “Depois de estabilizada a sua situação clínica, foram realizadas as provas de morte cerebral, que obedecem a um protocolo rígido. Os mesmos exames são realizados seis horas depois, com a colaboração de um médico externo ao serviço (normalmente um neurocirurgião)”, explica. “A hora das segundas provas é a hora oficial da morte.” No caso de Sandra Pedro, a declaração foi feita às 23 horas e 43 minutos.

“Nessa noite já não liguei a nenhum membro da família. Esperei pela manhã para lhes comunicar a notícia, antes de sair do serviço”, conta a médica. Depois de informar que Sandra tinha morrido, trocou de roupa e foi para casa, carregando um peso maior que o costume. “Perdemos muitos doentes neste serviço mas uma grávida afeta-nos sempre de forma diferente.” Nesse momento, não imaginava que iria voltar a ver aquela mulher. Muito menos durante quatro meses, cuidando de cada parâmetro da sua saúde. A viabilidade daquela gravidez tão recente não tinha ainda sido discutida e nem a família ousava perguntar mais nada. “Quando me disseram que a Sandra tinha morrido, assumi logo que o bebé também”, explica a irmã.

Anabela viajou nesse domingo para Lisboa, tal como os seus pais. Ainda ia a caminho quando lhe ligaram da agência funerária, dizendo que havia algum problema porque o hospital não libertava o corpo. O que se passaria?

Foi na unidade de cuidados intensivos de São José que conheceram, pela primeira vez, Miguel Ângelo. Falaram pouco. O momento era de consternação. Afinal, Sandra estava morta, de facto. Mas ainda havia vida dentro dela.

Os médicos explicaram à família que “era uma questão ética do hospital”: não iriam desligar as máquinas de suporte de vida havendo batimentos cardíacos do bebé, e porque este aparentava estar bem, apesar de todas as circunstâncias. Contudo, não podiam garantir que não viessem a existir sequelas, nomeadamente problemas cerebrais, devido aos períodos em que a mãe esteve em paragem cardíaca. Quanto tempo teria estado sem oxigenação? Como é que a morte da mãe afetaria o seu desenvolvimento? Naquele momento, existiam muitas perguntas e poucas certezas. Mas era entendimento do hospital, com uma equipa fortemente pró-vida, que aquela gravidez de 17 semanas não devia ser interrompida.

O namorado de Sandra começou por recusar a ideia de prolongar a gestação desta forma, até porque sentia não ter condições para cuidar sozinho do bebé, ainda por cima com a possibilidade deste vir a ter sequelas graves de saúde. Os médicos pediram-lhe para pensar até ao dia seguinte, com mais calma. Afinal, tinha acabado de saber que a namorada morrera, seria preciso respirar fundo e ganhar alento para antever o que seria o futuro.

Entretanto, a Comissão de Ética do Centro Hospitalar Lisboa Central, a que pertence o hospital de São José e a Maternidade Alfredo da Costa, nomeara já uma comissão para analisar o assunto. E, numa decisão inédita em Portugal, solicitaram de imediato ao Ministério Público que equiparasse esta “vida fetal” a uma criança em risco, protegendo-a de “eventuais contradições” da vontade do pai. A medida tutelar foi emitida no mesmo dia. Miguel Ângelo acabou por assinar posteriormente um “consentimento informado”. Nesse documento estavam enumeradas todas as complicações de saúde que poderiam surgir e os objetivos que a equipa médica iria tentar alcançar: manter a gravidez até às 24 semanas (o limiar da viabilidade), depois até às 28, 32 ou 36 semanas.

Para a família materna não existiam dúvidas: manter a gravidez seria o desejo de Sandra. Anabela recorda que a irmã “sabia que estava doente e que não podia engravidar”, mas quis muito este bebé, desde o início. “Deu a vida por ele.”

OS MÉDICOS TAMBÉM CHORAM

O resto já sabemos, foi notícia em todo o mundo. Sandra Pedro foi, durante 107 dias, uma incubadora biológica do filho, que nasceu às 32 semanas de gravidez, às 15h05 do dia 7 de junho, com 2,350 quilos e uma vitalidade invulgar para um bebé prematuro, ainda por cima gerado no útero de uma mãe morta. Um feito da medicina e que só foi possível graças à dedicação intensiva de uma equipa com mais de 80 pessoas (entre médicos, enfermeiros e auxiliares), que tratavam rotativamente, 24 horas por dia, daqueles pacientes especiais da unidade de nível III de neurocríticos, no Hospital de São José.

“A minha irmã trabalhava numa churrascaria mas tinha os seus sonhos. Era uma mulher muito alegre, muito divertida, e costumava dizer-nos que um dia iria ser famosa…”, lembra Anabela Pedro. “Nunca pensámos que isso iria acontecer, de facto, e muito menos desta forma.”

Para melhor compreender a magnitude do que foi alcançado é preciso perceber que os médicos estão preparados para conseguir manter a estabilidade do organismo de alguém em morte cerebral durante algumas horas, para que possa ser realizada a doação de órgãos. Nunca durante alguns meses.

É o cérebro que regula todas as funções do nosso corpo e, neste caso, foi necessário substitui-lo em situações com uma complexidade acrescida: por um lado, assegurando o desenvolvimento saudável do feto; por outro, compensando o desequilíbrio hormonal provocado pelo tumor que também continuava a crescer no rim de Sandra. “Estudámos muito outros casos internacionais, analisámos o que outros colegas fizeram, mas esta era uma situação muito diferente, com uma gravidez muito precoce, acabámos por ter de criar o nosso próprio protocolo, vigiando de forma muito apertada a possibilidade de complicações, como infeções, e realizando análises e testes de vigilância, como o controlo da glicémia, da hormona tiroideia ou da temperatura corporal, em momentos específicos”, explica a intensivista Susana Afonso.

Além disso, havia que ir acertando o tipo de alimentação endovenosa a dar à mãe. E cuidar do seu corpo caído na cama, movimentando-o, massajando-o, para que não perdesse vitalidade ou ficasse com feridas. Essa era uma das tarefas dos enfermeiros, que trataram de Sandra com um carinho extremo, fazendo festinhas na sua barriga e falando também com o bebé ou colocando música para ele ouvir, tentando quebrar o silêncio e o vazio emocional em que ele se desenvolvia. A enfermeira Rosário Coelho, responsável pela unidade de cuidados intensivos de São José, onde trabalham 62 enfermeiros, reconhece que a equipa se envolveu emocionalmente com esta mãe e este filho de uma forma invulgar. “Era inevitável, em 22 anos de serviço nunca vi nada assim. Primeiro a situação assustou-nos um bocadinho, não sabíamos como iria ser possível manter aquela gravidez até à viabilidade…”, confessa. Mas, com o passar do tempo, “adotaram” aquele menino. Por isso, no dia do parto, mesmo os que não estavam de serviço apareciam em São José ou telefonavam a saber o que se passava. Rosário Coelho foi uma das duas enfermeiras que puderam assistir ao momento.

No bloco operatório estavam apenas seis pessoas e foi à obstetra Ana Campos que coube a missão de fazer nascer este “bebé-milagre”, como o mundo o viria a conhecer. Tecnicamente, foi apenas mais uma cesariana, sem qualquer complicação e realizada em poucos minutos. Mas emocionalmente marcará para sempre a diretora-adjunta da Maternidade Alfredo da Costa. Durante quatro meses não dormiu descansada, com o telemóvel sempre à cabeceira: havia ordens para a contactarem sempre que houvesse alguma preocupação com a saúde daquele feto. Os seus olhos ainda brilham quando recorda o momento em que retirou o bebé do ventre da mãe. “Quando o vi, muito cor de rosa e cheio de vida, a chorar com grande vitalidade… foi especial”, diz. Nesse momento, ergueu-o bem alto, mostrando-o às dezenas de enfermeiros e outros médicos do hospital que espreitavam para a sala do bloco, do outro lado do vidro. Houve vivas, abraços, risos e choro de alegria. Era o culminar de um trabalho de 15 intensas semanas, envolvendo a dedicação de tanta gente, para que aquele menino pudesse ter uma chance de sobreviver sem a mãe.

A equipa de neonatologia colocou-o na incubadora e, antes de o levarem para a unidade de prematuros da Maternidade Alfredo da Costa, pararam no corredor, onde a família teve a oportunidade de o ver por uns instantes, ao lado de dezenas de profissionais dos cuidados intensivos do São José. “Tão bonito, perfeito e redondinho… e muito parecido com a minha irmã”, relembra Anabela, emocionada.

A obstetra Ana Campos, diretora-adjunta da Maternidade Alfredo da Costa, fez a cesariana mais especial da sua carreira no dia 7 de junho. No bloco operatório, e fora dele, todos os profissionais se emocionaram no momento em que se cortou o cordão umbilical

A obstetra Ana Campos, diretora-adjunta da Maternidade Alfredo da Costa, fez a cesariana mais especial da sua carreira no dia 7 de junho. No bloco operatório, e fora dele, todos os profissionais se emocionaram no momento em que se cortou o cordão umbilical

Luis Barra

NOVA BATALHA À VISTA

Contudo, se naquele momento choraram de alegria, daí a pouco chorariam de novo de tristeza. No bloco operatório desligavam-se as máquinas de Sandra Pedro. A enfermeira Rosário Coelho recorda o silêncio que se impôs, enquanto ajudava a preparar a mortalha e a colocá-la no saco. Para a família, era chegado também o momento de se despedirem, de aceitarem que ela morrera, realmente. “Até ao fim, acreditei na possibilidade de um milagre”, reconhece a irmã.

A 8 de junho, Sandra Pedro foi cremada. O funeral foi muito emotivo. Miguel Ângelo esteve presente mas sem falar com família. No dia seguinte entraria com um pedido de tutela do filho, no Tribunal de Menores, voltando atrás com a decisão acertada numa reunião duas semanas antes, com a família e uma equipa de médicos de São José e da Maternidade Alfredo da Costa. Aí, como a VISÃO confirmou junto de três fontes diferentes, ficou acordado que quando Lourenço tivesse alta seria entregue à avó e à tia materna, uma vez que o pai afirmava não ter condições para assumir a responsabilidade e a família que o acompanhava (uma irmã e uma tia) também diziam não o poder ajudar.

Contactado pela VISÃO, Miguel Ângelo Faria não quis adiantar mais pormenores, reiterando apenas que vai querer ficar com a tutela do filho, a quem decidiu chamar Lourenço Salvador. Com uma vida até agora “sem rumo”, como contou ao jornal Observador, vê no milagre do nascimento do primeiro filho uma oportunidade para, também ele, renascer.

As lágrimas voltam a cair pelo rosto de Anabela Pedro quando pensa na possibilidade de não poder criar o filho da irmã. Na sua casa ribatejana o cheiro a tinta fresca sobrepõe-se ao do campo, na Primavera. Tem estado a preparar a casa para receber o sobrinho, a que se refere sempre como “o meu menino”, e recorda as promessas trocadas com a irmã, vezes sem conta, ao longo dos anos: “Se eu morrer, toma conta dos meus filhos.” O mais velho está bem, com o pai, e “sabe que pode contar com a família da mãe para tudo”, diz Anabela.

Por Lourenço, promete, lutará até às últimas consequências. “Não quero que ele seja afastado do pai, ele poderá sempre vê-lo quando quiser. Mas para já, este menino precisa de cuidados especiais que não poderá ser este pai a dar-lhe”, defende.

Depois da luta pela sobrevivência, avizinha-se uma batalha legal por este bebé. Sem consciência da importância que a sua vida ganhou em todo o mundo, Lourenço vai fazendo a sua parte. Os médicos dizem que é um lutador, como também era a mãe. Não aparenta ter lesões cerebrais (fará nova ressonância magnética dentro de dois meses), é muito ativo, já respira sozinho e começou a beber leite de uma dadora, com grande vontade. Se tudo correr como esperado, até ao final do mês deverá ter alta.